Crônica: Caminho do abandono
- Equipe Zoo Livre
- 1 de dez. de 2020
- 8 min de leitura
Ao abrir meus olhos pela primeira vez, eu enxerguei tudo. Minha mãe e muitos outros de mim, irmãos e irmãs. Mas também havia outros, não como eu, uns grandes e outros pequenos, eu não sabia identificar. Com o tempo descobri que aqueles eram humanos, pessoas, adultos, jovens e crianças; para quem tinha acabado de conhecer o mundo até que minhas percepções eram boas e essas características sempre caminharam comigo: vida de bicho e uma consciência humana.
Desde o começo eu percebi que era diferente, não sabia explicar porque saíam tantas palavras da minha cabeça e nenhuma da minha boca, me questionava se a minha barba me impedia de falar, de uma coisa eu sabia, ela muito me incomodava. Os dias se passaram e eu me acostumei com essa conversa solitária. Meus momentos favoritos se resumiam na companhia de meus irmãos e minha mãe - aparentemente brava e extremamente preocupada - e quando os humanos grandes mexiam na minha orelha carinhosamente. Temia quando via os humanos pequenos, mas eles eram detidos pelos outros ou pelos gritos da minha mãe brava.
Ah se eu soubesse que me separaria dela tão cedo, teria aproveitado mais tempo com a minha mãe. Apesar de parecer brava, ela nos protegia e nos limpava, eu tenho certeza que ela nos amava e eu queria muito saber tudo que ela pensava, mas passei tempo demais brincando, dormindo e admirado com todos ao meu redor. Pouco tempo tive para olhar e amar ela, um dia estávamos todos em uma caixa e eu não enxergava mais aquela que tanto me amava. Com alguns dos meus irmãos na caixa, imaginei que nós estávamos indo brincar em um lugar diferente e que depois iriamos voltar. Mas isso não aconteceu.
Depois de dias na caixa, sem nenhum movimento conhecido, nenhum rosto humano que estava acostumado, eu descobri que o mundo era maior do que eu imaginava. Fora da nossa caixa tinha coisas novas, acho que nossa mãe nos amava tanto que nos deu a oportunidade de conhecer novos lugares maravilhosos, eu tinha a esperança que ela ia nos buscar, nos limpar e cuidar da gente novamente. Depois de dias dentro da caixa, nós só enxergávamos o novo teto da nossa nova casa, só que esse teto era azul com fumaças brancas, descobri que era o céu e as nuvens. Algumas vezes caia água e não tinha gosto de nada.
Pensando em gosto, nós esperávamos a nossa mãe porque já sentíamos fome. Mas ela estava demorando muito, então continuamos a esperar na caixa. Um dia, um dos meus irmãos saiu, não sabia o que ele pensava, mas queria impedi-lo de se separar, não consegui e ele não voltou mais. Será que ele tinha encontrado a nossa mãe? Ou alguns daqueles humanos? Esse era o único motivo que eu podia pensar para ele não ter voltado. Na esperança de encontrar alguém e de passar a fome, decidi sair, talvez eu conseguisse chamar alguém para nos buscar, depois disso a minha jornada começou.
Diferente da nossa casa, aquela casa tinha muitos baldes, sujeiras e lixos. Não sabia o que era, mas era escuro e pequeno, como se fosse um só corredor com pinturas estranhas nas paredes. Dentro da caixa eu não tinha sentido o cheiro forte daquele lugar, minha barba mexeu muito até se acostumar com o meu focinho ardendo, pensei em voltar, mas eu tinha duas missões: me alimentar e encontrar alguém. Andando um pouco vi outros de mim, na verdade eles eram como a minha mãe, tenho certeza que eles saberiam onde ela estaria, eram parecidos e melhor ainda, estavam comendo. Todos os meus problemas tinham sido resolvidos, era só comer com eles e pedir para me levarem até a minha mãe. Ao chegar perto eu não lembro muito bem o que aconteceu, mas eu senti uma dor que nunca passei em nenhum desses dias na caixa.
Fiquei dias parado, quieto, não tinha forças para voltar para caixa, tentei não me mover para não irritar novamente os outros gatos. Eles pareciam com a minha mãe, mas eu tenho certeza que ela nunca me atacaria daquela maneira, eu não entendia o que tinha feito, mas sabia que eles não me amavam. Em meio àquela dor, eu dormia e acordava, não conseguia enxergar muito bem, mas um dia alguém me encontrou. Era uma humana diferente, eu estava no colo dela e ela me abraçava, não entendia o porquê, mas ela estava chorando.
Quando me dei conta, estava em uma outra casa, pequena e sem nenhum outro como eu, mas era quente e cheirava bem. Me sentia melhor, eu pude comer e brincava sozinho, com o que eu achava. Todos os dias depois de um bom tempo, a humana nova chegava, ela era grande e sempre mexia na minha orelha, na minha barriga e nas minhas patinhas, ela me amava. E então os dias se passavam e eu já tinha me acostumado, não me lembrava tanto da minha mãe, dos meus irmãos e dos outros humanos. Eles iam se encontrar e eu esperava que eles se sentissem bem como eu.
A minha rotina sempre foi a mesma, tinha vezes que a humana demorava mais e outras menos. Mas houve um dia em que outro humano estava com ela, eu nunca senti aquilo, quando o vi meu peito chiava, meus pensamentos estavam confusos e eu sentia uma grande ameaça, eu não entendia e não sabia o que estava acontecendo, será que a minha humana estava em perigo? Eu precisava avisá-la, talvez ela estivesse sendo ameaçada! Infelizmente o meu aviso não agradou, ela não entendeu e eu fui para um lugar escuro, pequeno, vi a porta sendo fechada e a escuridão me tomou. Quando acordei, tudo estava normal, a porta aberta e eu voltei a minha rotina, aquilo deveria ter sido um pesadelo, tudo ia voltar ao normal.
Aquilo se repetiu, toda vez que ele entrava, eu era trancado. Não conseguia mais enxergar ele e poucas vezes via a humana que me amava. Isso acontecia sempre e eu não entendia, provavelmente o outro humano não era uma ameaça, queria conhece-lo e deixar ele mexer nas minhas orelhas, mas antes disso acontecer eu estava novamente na caixa. Dessa vez eu lutei para sair dela, minha última experiência com a caixa não tinha sido boa. Não teve jeito, novamente outra casa, movimentada, barulhenta, com um cheiro forte e uma fumaça preta ao redor. Dessa vez eu sentia mais fome, então sai o mais rápido possível, atrás da minha humana.
Procurei ela, me escondi de outros como eu, não achei comida. Essa casa era maior, muito movimentada e ninguém parecia morar ali. Todos andavam muito rápido, não olhavam para ninguém, se concentravam em caixas pequenas na mão. Muitos pisaram em mim, esbarraram e nem percebiam que eu estava perdido. Não me enxergavam, era como se além de grandes, eles fossem superiores. Senti outra dor, mas essas era diferente, ia além do físico e marcava meu peito, em vez de chiar eu queria chorar e então chorei.
Chorei com toda aquela movimentação ao meu redor, mas eu sabia que precisava parar. Eu precisava buscar alguém conhecido, talvez eu estivesse em uma casa perto da casa dos meus irmãos, da minha mãe ou da humana que me amava. Decidi procurar, mesmo com a dor, eu precisava encontrar a minha felicidade novamente. Enquanto andava eu enxergava caixas que se moviam, essas não paravam por muito tempo, imaginei que elas transportavam coisas, porque delas saíam pessoas. Segui uma delas e cheguei na frente de uma casa diferente.
Essa casa parecia ser várias outras juntas, quanto mais eu caminhava, nunca encontrava um fim, lá tinha pessoas e brinquedos que eu nunca vi na vida. Ali eu ia encontrar pessoas conhecidas, já que era grande e tinha tanta coisa que eu poderia brincar novamente e talvez até comer. Foi um período longo que passei ali, cheirava bem e eu estava me sentindo em casa novamente. Mas não podia ser, uma casa só é uma casa se o amor habitar lá dentro, o amor nunca habitou sozinho comigo, não tinha alguém para fazer carinho na minha orelha, na verdade muitos até me chutavam quando passavam perto de mim, talvez eles não me enxergassem, por serem grandes.
Em um momento um cheiro forte passou pelo meu focinho, aquilo ardia e minhas barbas não paravam de mexer. Eu podia sentir o faro queimando dentro de mim e então tudo estava muito quente, aquela fumaça que eu encontrei na outra casa tinha se tornado mais escura e muito forte. Meus instintos me puxavam para fora, aquele lugar que antes eu gostei, agora se tornava perigoso. Caminhei para longe, mas estava cada vez mais quente, existia algo que queimava, percorria por todo espaço e começava a me machucar e então essa dor começou.
Eu achava que tinha passado por dores difíceis, nenhuma se comparava aquela. Ardia, cheirava mal, me enfraquecia e fazia eu sentir muito calor. Eu não conseguia ouvir mais nada, só enxergava a fumaça preta com uma outra coisa, era algo diferente e tinha cores fortes, laranja e brilhava muito. Quando achei que não ia mais aguentar, não tinha mais forças para respirar, me sentia sufocado e abrasado e então meus olhos se fecharam pela última vez e a dor passou.
Entrei em um sono profundo, tudo que eu tinha vivido se passava na minha mente, mas eu estava dormindo e enxergando tudo a minha frente. Nunca passei por aquilo antes, nem mesmo em meus sonhos, tudo que vivi desde que abri meus olhos pela primeira vez, estavam projetados na minha cabeça como um lembrete constante. Eu conseguia ouvir vozes e identificava poucas coisas ditas, humanos falavam ao meu redor, não entendia muito bem pois estava com os olhos fechados, eles repetiam uma mesma frase diversas vezes e eu não esquecia: 21 de dezembro, Museu Nacional da Língua Portuguesa.
Não sabia o que aquilo significava, eles repetiam diversas vezes e acrescentavam: ano 2015. Enquanto isso, o filme da minha mente mostrava os momentos mais difíceis, eu enxergava como se fosse um telespectador da minha própria história. Daquilo tudo eu não conseguia sentir dor, só sentia amor por todas as partes que vivi e fui feliz, como se todo sentimento ruim fosse deletado naquele filme e me parecia uma vida feliz e carinhosa.
Consegui finalmente abrir meus olhos, enxergava tudo mais claro, me sentia completo e a sensação era de estar sendo acarinhado o tempo todo. Eu vivia uma felicidade que era constante e eu tinha certeza disso. Os humanos eram diferentes, não poderia chamar eles assim, aqueles seres eram enormes, brilhavam muito e emitiam lindos sons que eu nunca captei antes. Eles tinham asas e flutuavam ao meu redor, eu me sentia realizado com aquela vista, tudo dentro de mim estava controlado, não tinha dor, não tinha saudade, muito menos fome. Eu estava admirado, lá havia outros como eu, mas todos brilhavam muito, será que eu estava brilhando também? Nem a minha barba, que tanto me incomodava, me trazia problemas.
Ali eu tinha a disponibilidade de tudo que precisava, mesmo não encontrando muitas necessidades. Havia outros como eu, que brincavam comigo com brinquedos diferentes. A comida ficava exposta, muitos seres brilhantes e flutuantes me olhavam e eu me sentia mais amado do que nunca. Alguns diziam que o Chico (São Francisco) ficaria feliz, não sabia quem era esse, mas me parecia famoso. Finalmente eu encontrei paz e certeza de que para sempre eu estaria salvo. Eu tinha amor, carinho e sabia que tudo que eu passei valeu a pena, pois naquele momento eu vivia um carinho na orelha eterno.
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